ATO REGULAR DE GESTÃO
A curiosidade matou o gato. Era o que escutavam com frequência crianças com a minha idade, naquela época em que queríamos saber tudo, principalmente da conversa de adultos que ouvíamos em retalhos porque as salas eram contiguas, mas separadas: adultos de um lado, crianças, de outro. E não tínhamos aparelhos eletrônicos e nem Google para buscar informações complementares. Se a curiosidade fosse grande, e o “limite territorial” ultrapassado, o gato não morria, mas ficava de castigo por um bom tempo.
Não de forma muito diferente, permanece ainda hoje um grande grau de curiosidade com relação ao ato regular de gestão, o que, se não é mortal, pode gerar alguma apreensão para dirigentes e conselheiros: O que é, afinal, o ato regular de gestão? Qual o seu conteúdo? Qual a sua dimensão? Qual é o tratamento legal?
Realmente, o ato regular de gestão tem a maior importância na administração de qualquer tipo de sociedade, seja qual for a sua finalidade. Será, sempre, a natureza do ato de gestão que vai dar, ou não, credibilidade e integridade ao negócio e demonstrar, perante sócios, proprietários, acionistas, quotistas, associados, patrocinadores, participantes ou assistidos (os três últimos grupos para as entidades fechadas de previdência complementar) o nível de governança de cada ambiente. Se o ato de gestão não se revestir de regularidade, a governança restará absolutamente comprometida. Desaparece no curto prazo e leva junto o negócio. E não é preciso citar nomes para os fatos recentes ocorridos com empresas conhecidas e fartamente divulgados.
O que é ato regular de gestão? Em primeiro lugar, é aquele praticado de acordo com a regulação que rege determinado tipo de sociedade e o seu objeto. Qualquer ato praticado com infringência à legislação é irregular e se dele resultar dano gera obrigatoriedade de ressarcimento por quem o praticou, o que não é nenhuma novidade, porque a regra que vem desde Ulpiano.
Em segundo lugar, penso que o ato só se reveste de regularidade se executado pelo agente incumbido de praticá-lo pela Lei, estatuto da sociedade, regimentos internos e atribuições que lhes forem imputadas ou delegadas pelos órgãos competentes. Tanto assim é que, deixar de executar essas competências é grave omissão, passível de responsabilização também. Além disso, o ato praticado deve estar em perfeito alinhamento com os objetivos da sociedade de forma que os seus interesses ( e não os dos administradores) prevaleça. Resumindo: o ato não é regular se for praticado em conflito de interesses.
Em terceiro lugar, também penso que o ato se reveste de regularidade se praticado pelo agente capacitado. Olho com alguma apreensão decisões tomadas por pessoas sem preparo técnico e gerencial e que aceitam ou acompanham opiniões e mesmo documentos que não entendem. Nessa situação, poderão estar presentes vieses cognitivos (percepção distorcida da realidade) que comprometem o processo de tomada de decisões e, com mais rigor, não só o processo mas as decisões tomadas. Também aqui o ato não se revestirá de regularidade.
No especial caso das EFPC, o termo “ato regular de gestão” veio com a Resolução CGPC nº 13 em 2004, sem definição, como se lê no parágrafo único do artigo 22, que autoriza a contratação de seguro para cobertura de responsabilidade civil, penal ou administrativa:
Art. 22 (…)
Parágrafo único. O conselho deliberativo poderá assegurar, inclusive por meio de contratação de seguro, o custeio da defesa de dirigentes, ex-dirigentes, empregados e ex-empregados da EFPC, em processos administrativos e judiciais, decorrentes de ato regular de gestão, cabendo ao referido órgão estatutário fixar condições e limites para a finalidade pretendida.
Pois bem. A Resolução, como se sabe, trouxe os princípios, regras e práticas de governança para as EFPC, seus dirigentes, conselheiros e colaboradores. Ao mencionar o ato regular de gestão também admite que esses poderão ter proteção através do custeio da defesa em processos administrativos e judiciais. Mas não só isso. Uma leitura mais atenta dos demais dispositivos vemos todo o seu conteúdo e a sua dimensão: existência de política de controles internos; conduta permanentemente pautada por elevados padrões éticos e de integridade; atitudes voltadas para a defesa dos participantes e assistidos; identificação e tratamento de situações de conflito de interesses; exercício das funções com competência técnica e gerencial; atendimento aos pré-requisitos legais e estatutários; independência de atuação; identificação, tratamento imediato e monitoramento permanente de todos os riscos com observância dos princípios de conservadorismo e prudência; usar de transparência quando as questões não se revestirem de sigilo. Além disso, os atos regulares são, sempre, praticados de boa-fé, ou seja, se estiverem presentes o dolo, a fraude ou a simulação não há como falar em regularidade do ato. Nessas hipóteses, resultando dano ou prejuízo para a EFPC (inclusive de imagem) e para os planos por ela operados, o administrador (conselheiro ou dirigente) deverá responder pela indenização correspondente.
Alguns podem alegar que a aplicação da regra encontra dificuldades, por entenderem o conceito eivado de subjetivismo. Quero lembrar que a Lei das S/A, vigente de 1976, traz o mesmo conteúdo do ato regular de gestão no seu artigo 158 de forma clara e precisa: é o ato praticado dentro das atribuições ou poderes do administrador sem a presença da culpa ou do dolo e sem a violação da legislação ou do estatuto da sociedade.
Assim, como citei Ulpiano no início, lembro por último que a etimologia da palavra regular vem do verbo regularis, o que significa estar sujeito a regras e, por isso, é reto (vejam a palavra régua), é certo dentro daqueles limites.