202202.22
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Ética e gestão temerária (ou por que não colocar o carro adiante dos bois)

Agir eticamente envolve um uso particular da razão. Para refletir e deliberar sobre a ação. É um uso que nos acompanha ao longo da vida. Ininterruptamente. Não há como interrompê-lo para treinar e aperfeiçoar. Esperar melhorarmos um pouco para só então voltar a viver. É o exercício da ética que nos torna humanos. A ética humaniza o homem. Não tem como restringi-lo a quartas-feiras e domingos. Ou a de quatro em quatro anos¹.

Quando eu li o parágrafo, logo me veio à mente que, usualmente, os mandatos dos membros da diretoria executiva das entidades fechadas de previdência complementar – EFPC são de quatro anos, “permitida a recondução”. Com essa garantia de perpetuidade pode vir a desatenção calcada nos usos e costumes, mas nem sempre sustentada pelas boas práticas: visão estratégica de longo prazo com a obrigação de decidir no curto prazo, com transparência, lealdade e observância de princípios de conduta adequados ao ambiente e aos planos de benefícios operados pelas entidades. Portanto, mais do que seguir (mas também se obrigando a seguir) códigos e manuais, é importantíssimo agir de forma razoável e adequada para não colocar em risco o patrimônio investido por e para participantes e assistidos. Agir eticamente com a razão e buscando o melhor resultado. Isso é o mais importante.

Em 1990, a International Organization of Securities Comissions – IOSCO estabeleceu princípios visando a proteção de investidores sobre: 1) honestidade e equidade; 2) diligência; 3) competências; 4) informações sobre os clientes; 5) conflitos de interesses; e 6) conformidade. Para Maria Fernanda Vieira Rodrigues Couto.

Tais princípios são uma base adequada para a elaboração dos regimentos internos e de códigos de ética, que hoje fazem parte de toda organização e devem recepcionar os empregados no momento da sua entrada na empresa2.

Vou além: quaisquer princípios norteadores de comportamento devem ser aplicados por conselheiros e dirigentes que, por sua vez, devem incentivar a sua divulgação e prática através de eventos e treinamentos; devem ser avaliados permanentemente e, sempre que necessário, re-vistos e novamente divulgados para colaboradores internos e todas as partes relacionadas. E desses princípios se depreende que são o que usualmente se denomina de bons princípios, de princípios moralmente adequados para a boa administração.

Pois bem. Normas de conduta são necessárias para orientar o processo decisório quando nos encontramos frente a fatos conflitivos e escolhas. Com a cautela e com a prudência necessárias à figura do investidor institucional que é a EFPC que, por sua vez, delibera, executa e fiscaliza as decisões e resultados através do conselho deliberativo, da diretoria executiva e do conselho fiscal, respectivamente. Por isso, e por exigir cautela e prudência, cuidado para não colocar o carro adiante dos bois. Sempre é bom lembrar que

A moral concerne a coisas que fazemos por nossa escolha e às suas consequências. Quanto a essa distinção, nosso vocabulário está suficientemente provido: há comportamentos que consideramos “lícitos” e comportamentos que consideramos “ilícitos”. A moral seria menos complicada se, quanto aos fatos conflitivos da vida, pudéssemos saber com antecipação o que é licito, o que é ilícito (o que é certo e o que é errado) e o que é um dever.3

Aí é que mora o perigo. Conselheiros e dirigentes devem saber exatamente o que é licito e o que é ilícito; devem saber exatamente como se conduzir diante de fatos caracterizados como conflitivos diante de dois ou vários interesses; devem se orientar pelas melhores práticas de governança corporativa, especialmente pela Resolução CGPC 13/2004 e Resolução CMN 4661/2018; devem estar qualificados, certificados e habilitados para o exercício das funções, conforme a legislação em vigor.

Como é que gestão temerária entra nesse contexto da ética?

Vou tentar refletir e responder rapidamente três perguntas.

Primeiro: o que é gestão temerária?

Gerir temerariamente é gerir sem cautela, sem prudência, sem preparo técnico e gerencial, é decidir afoitamente sem refletir e analisar todas as possibilidades e implicações de cada uma delas, sem considerar o risco do negócio, do produto ou do investimento. Ou seja, entendendo que toda ação deliberada nos colegiados visa alcançar determinado resultado e, por isso, deve ser valorada moralmente.

Evidentemente, considerando que nossa lei penal adota a teoria da conditio sine qua non, a conduta delitiva intensificou-se em face da utilização, pelo legislador, do conceito de crimes de mera atividade, em que pese a análise do fato deva considerar se o resultado ocorreria independentemente do comportamento do autor.

Segundo: como a gestão temerária é tratada pela lei penal?

A Lei 7492/1986 trata de crimes contra o sistema financeiro nacional equiparando a pessoa jurídica que capte ou administre seguros, câmbio, consorcio, capitalização ou qualquer tipo de poupança ou recursos de terceiros a instituição financeira4. Assim, quan do a Lei diz tratar de ilícitos contra o sistema financeiro, mais adequado será interpretá-la “contra o sistema econômico”.

Como se lê no seu texto, a gestão temerária está prevista no parágrafo único do art. 4º com os comentários do meu querido e saudoso professor de Direito Penal, Manoel Pedro Pimentel:

O crime consiste em gerir fraudulentamente ou, então, gerir temerariamente. Gerir significa administrar, dirigir, regular, comandar.

(…)

Gestão temerária é caracterizada pela abusiva conduta, que ultrapasse os limites da prudência, arriscando-se o agente além do permitido mesmo a um indivíduo arrojado. É o comportamento afoito, arriscado, atrevido.

Aqui se impõe aquela observação já ensaiada linhas atrás. Pode uma gestão ser temerária e, no entanto, bem sucedida, trazendo vantagens para a empresa. A Lei de Economia Popular, já vimos, somente considerava crime a gestão temerária de que resultasse prejuízo para os interessados. A lei atual, não. Não distinguiu. De acordo com a redação do art. 4º, parágrafo único, basta que a gestão seja temerária, independentemente da existência de prejuízo ou mesmo de um dano potencial, o crime existirá.5

Terceiro: por que gerir temerariamente é anti-ético?

Porque ser prudente é uma virtude. E o comportamento ético é, acima de tudo, virtuoso. E governança é comportamento ético, também acima de tudo. E exercer competências colegiadas ou singulares exige qualidades morais, entre elas a disposição e o propósito de atuar com ética, com transparência, com disposição para assumir riscos, mas de acordo com princípios que não ultrapassem os limites da prudência, para voltar ao início deste parágrafo.

Encerro com duas reflexões de Baltazar Gracián y Morales que, no meu entender, se aplica à gestão de riscos, inclusive ao risco de reputação e de imagem que, diante da gestão temerária se concretizam:

Esta é uma das primeiras regras da prudência. As grandes inteligências sempre deixam muito caminho livre antes dos momentos críticos: há muito que andar de um extremo a outro e elas sempre estão centradas em sua sabedoria. Só chegam a uma decisão depois de muito pensar, porque é mais fácil evitar o perigo do que sair bem dele. Cada risco traz outro maior, conduzindo-nos à beira do precipício.

 Há homens imprudentes que, por temperamento ou nacionalidade, se encontram facilmente em situações difíceis. Mas o que caminha à luz da razão vai sempre muito atento, considera melhor não se arriscar do que vencer o perigo. Quando encontra um tolo imprudente, evita tornar-se o segundo.

 (…)

A tolice sempre entra de roldão, pois todos os tolos são audazes. A mesma estupidez que os impede de perceber o perigo depois não lhes deixa ter a sensação de fracasso. Mas a prudência chega com grande tato. A observação e a cautela são seus batedores, abrindo caminho para que possa avançar sem perigo. Qualquer ação irrefletida está condenada ao fracasso pela discrição, ainda que às vezes se salve pela sorte. Convém ir com cuidado por onde se teme ser muito fundo. A sagacidade deve estudar o terreno e a prudência conduzir à terra firme. Hoje há muitos perigos no trato humano e convém explorar o caminho com cuidado.6

Observação importante: esses textos foram escritos há mais de trezentos anos.


PAGLIARINI, APARECIDA RIBEIRO GARCIA. ARTIGO DE ÉTICA: ÉTICA E GESTÃO TEMERÁRIA (OU POR QUE NÃO COLOCAR O CARRO ADIANTE DOS BOIS). SÃO PAULO: SINDAPP, 2022. 3 p. (COLEÇÃO DE ARTIGOS DO SINDAPP).

  1. Reputação: um eu fora do meu alcance; Clóvis de Barros Filho e Luiz Peres- -Neto; RJ; HarperCollins, 2019; pág. 61
  2.  Ética nos Negócios: Leis e Práticas que orientam as organizações no relacionamento com seus parceiros; SP; Heccus Editora, 2015; pag. 32
  3. Ética; Sérgio Sérvulo da Cunha; SP, Saraiva, 2012, pag.15
  4. Art., 1º, parágrafo único, inciso I
  5. Crimes contra o sistema financeiro nacional: comentários à Lei 7.492, de 16.6.86; SP, Ed. Revista dos Tribunais, 1987, pág. 51
  6. A Arte da Prudência; apresentação e organização Domenico de Mais; RJ, Sextante, 2003, pág. 69
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